Páginas

segunda-feira, 18 de junho de 2018

RELIGIOSIDADE E CONTEXTO ESCOLAR: O “NÃO LUGAR” DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRO-BRASILEIRA

RESUMO
Partindo do pressuposto que a religiosidade figura entre os fatores que integram o contexto escolar, influenciando de forma significativa a própria cultura escolar e comunitária e os processos de aprendizagem, este projeto de pesquisa propôs localizar as práticas e vivências religiosas de matriz afro-brasileira no ambiente escolar, entre alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, em quatro escolas públicas, sendo três em dois grandes bairros periféricos e uma no centro de Leopoldina, município de 53 mil habitantes, na Zona da Mata de Minas Gerais. A opção por investigar a incidência de práticas religiosas de matriz afro-brasileira nessa faixa-etária surgiu a partir da pouca visibilidade do tema, percebida em um levantamento prévio, em uma destas escolas, como também o aparente desconhecimento dos aspectos da cultura afro-brasileira, presente em tais práticas, símbolos e mitos. Buscou-se ainda, refletir sobre a aplicabilidade da Lei 10.639/2003, no que tange a questão das manifestações da cultura afro-brasileira através da religiosidade, considerando os processos de construção de nossas identidades, seja pelo percurso histórico ou pelos aspectos étnicos. Como metodologia, observação participante ao ambiente escolar, análise documental, aplicação de questionários, por amostragem, junto às famílias e coleta de dados junto aos alunos através de resposta direta destes a partir de “rodas de conversas”, abrangendo, aproximadamente, mil alunos no total. Espera-se com esta pesquisa, abrir um leque para um maior aprofundamento das questões aqui suscitadas, na reflexão e identificação dos fatores socioculturais que caracterizam os grupos sociais ao mesmo tempo em que são tipificados por estes.   

Palavras-chave: Religião. Religiosidades Afro-brasileira. Contexto Escolar. Cultura. Identidade
________________________________________________________________________________


Aprofundar nas questões contextuais no ambiente escolar é buscar compreender melhor este contexto em todos os seus aspectos, intra e extra-escolares[1], possibilitando assim, relacionar o que ocorre, permeia e ultrapassa os processos escolares para a aprendizagem, na rotina escolar. Muitas das interrogações que suscitam o trabalho dos professores, da coordenação pedagógica e, por conseguinte, da gestão escolar, podem encontrar respostas ou minorar os anseios, na medida em que se observa e busca compreender os diversos movimentos, acontecimentos e comportamentos que caracterizam o ambiente escolar.
E sob este aspecto, a religiosidade pode ser considerada como um fator pertinente de observação e análise do contexto escolar, por estar principalmente vinculada ao próprio processo histórico e cultural da humanidade. Na sua análise sobre “o que é religião” Alves (1999) relaciona a religiosidade nos contextos culturais, sociais, antropológicos, psicológicos e políticos, no transcurso da história humana. Tendo como premissa a constatação de que o homem se vê como um ser inacabado, que precisa “se fazer” a cada instante, diferente do animal, que nasce com sua programação biológica completa (ALVES, 1999, p.18), o autor ressalta que na ânsia de transcender seu estado animal, os homens tornam-se “inventores de mundos” (ALVES, 1999, p.19) e assim produzem cultura e a religião surge nessa relação, como “[...] teia de símbolos, rede de desejos, confissão de espera, horizontes, a mais fantástica e pretensiosa tentativa de transubstanciar a natureza” (ALVES, 1999, p.24).
E em um mundo de incertezas, de mistérios que conduzem ao limiar da falência humana na expectativa da morte, a religião faria a ponte entre o passado – buscando na ancestralidade as justificativas para muitas das agruras do presente –, e o futuro, através da esperança em dias melhores e pela possibilidade de salvação e/ou remissão dos homens. Nessa tentativa de encontrar sentido para a própria existência, aconteceria o que Alves (1999, p.125) destaca como sendo o que mantém a experiência religiosa viva, ou seja, “[...] horizontes utópicos que os olhos não viram e que só podem ser contemplados pela magia da imaginação”. Assim, como um jogo de luz e sombras, o caminho percorrido pelos homens, entre ausências, consciência, alienação, linguagens, símbolos, sagrado, profano, faz constatar que “a consciência de Deus é autoconsciência; o conhecimento de Deus é autoconhecimento” (FEUERBACH apud ALVES 1999, p.13).
Em seu estudo sobre o impacto da religião no desempenho educacional, Cunha (2012, p.02) destaca a “importância crescente do tema, a escassez bibliográfica no Brasil e a recente mudança no quadro religioso brasileiro”, como fatores que em si já justificam trabalhos nessa linha. Referenciando Regnerus e Elder (2003), a autora afirma que

As igrejas reforçam as relações de suporte e controle familiar, assim como também normas baseadas no seu poder como uma instituição formal. A religião pode ser vista como uma segunda influência social nos adolescentes (sendo a família a primeira), assim como também a escola e os amigos, e é vista como capaz de afetar as crenças, atitudes e comportamento através de mecanismos como controle social, suporte social e valores (CUNHA 2012, p.02)

Percebe-se nessas afirmativas que a religiosidade como parte intrínseca das vivências pessoais e sociais não deveriam ser negligenciadas nas análises sócio-culturais e econômicas e, por conseguinte, no contexto educacional. Smith (2003, apud CUNHA 2012, p.96) sugere que a religião pode influenciar socialmente através de três dimensões: “1) ordem moral, 2) competência de aprendizado e 3) laços sociais e organizacionais”.
Em meio a essas reflexões e questionamentos, valendo-se da premissa que a religiosidade é preponderante no desempenho educacional e que a religião se manifesta de diferentes modos entre os indivíduos e seus grupos sociais, há de se considerar os processos que, no âmbito educacional, podem contribuir para o reconhecimento das identidades. Freire (1996) afirma que o ato de ensinar “exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural” (FREIRE, 1996, p.41). Pensando o processo educativo como processo dialético e dinâmico, o autor insiste queNão há prática docente verdadeira que não seja ela mesma um ensaio estético e ético [...]” (FREIRE, 1996, p.45) e propõe um exercício consciente e crítico na prática educacional, como uma vivência de reconhecimento de si para o reconhecimento do outro; é a proposta do “assumir-se”, em todas as suas dimensões e instâncias. Freire (1996, p.41) enfatiza que

Uma das tarefas mais importantes da prática educativa-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.

O respeito à identidade cultural, segundo o autor, é de fundamental importância para o desenvolvimento do que ele intitula de “prática educativa progressista”, integrando esta identidade cultural, à dimensão individual e coletiva dos educandos. Na concepção do autor seria a possibilidade de construção de um saber a partir do reconhecimento de si, através da “outredade”, ou seja, “a assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros” (FREIRE, 1996, p.41). Assumir a identidade cultural, manifestada implícita ou explicitamente no universo escolar, poderia abrir para uma construção coletiva e democrática do saber, que corresponda mais efetivamente com as peculiaridades das comunidades, o que seria uma atitude em si, mais ética e menos imperativa, contribuindo inclusive, para o acesso de grupos socialmente marginalizados – como os negros/afrodescendentes –, a um percurso educacional mais qualitativo.   
Na interface entre o contexto escolar – seja considerando fatores intra e extra-escolares – as questões referentes à identidade cultural vão se relacionar com a própria cultura escolar, sendo indicado esse aprofundamento, para um melhor entendimento das reflexões aqui elencadas. Segundo Julia (2001, p.10),

[...] poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

Na definição proposta pelo autor, que aborda a cultura escolar como objeto histórico, percebe-se a interdependência da cultura escolar com o que Júlia (2001, p.10) chama de “conjunto das culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular”; ou seja, a cultura escolar estaria baseada em práticas e na difusão de conhecimentos pré-definidos pelo próprio contexto social, também determinado pela conjuntura política, econômica e cultural daquele povo.
Situando a pesquisa junto à faixa-etária de seis a dez anos, entre alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, vale considerar o que diz Campos (2009, p.152), sobre o fato de alguns autores apresentarem “resistência em relação ao testemunho infantil como fonte de pesquisa confiável e respeitável”. A autora destaca ainda, a “importância da criança nas chamadas religiões afro-brasileiras”, além de outras religiões, mas ressalva que mesmo que estas alcancem algum destaque social, tal fenômeno acaba por “não ser problematizado teoricamente, permanecendo como resíduo nas observações etnográficas” (CAMPOS, 2009, p.151). Haveria nessa prática a pouca escuta da voz infantil e consequentemente certo descrédito do que viria da fala dos “pequenos”.
Na perspectiva de tentar relacionar a dinâmica entre a invisibilidade da religiosidade oriunda da matriz afro-brasileira nas escolas e a vivência das crianças nesse campo, em seu meio social, destaca-se a contribuição de Candau (2008, p.54), citando o “empoderamento” daqueles que no seu percurso histórico, foram alijados da possibilidade de influenciar em decisões coletivas. A autora orienta sobre a necessidade do trabalho com “grupos sociais minoritários, discriminados, marginalizados, etc.” (CANDAU, 2008, p.54), argumentando ainda sobre os desafios para uma “educação intercultural”, ressaltando:

As relações entre direitos humanos, diferenças culturais e educação colocam-nos no horizonte da afirmação da dignidade humana num mundo que parece não ter mais essa convicção como referência radical. Nesse sentido, trata-se de afirmar uma perspectiva alternativa e contra-hegemônica de construção social, política e educacional. (CANDAU, 2008, p.54)

Localizar essas diferentes identidades culturais, entrelaçadas com o universo religioso, objeto desta pesquisa, é também adentrar nessa seara de afirmação cultural, identitária que seria a própria afirmação da dignidade humana, como destaca Candau (2008, p.54). Permitindo que as crianças tenham voz e possam transparecer seus universos na construção de uma proposta de educação intercultural.
Na vertente da religiosidade de matriz afro-brasileira no campo da cultura, é destaque o que preconiza a Lei 10.639/2003, quando estabelece, no seu Art. 26-A, a obrigatoriedade para todos os estabelecimentos escolares, do “ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. E em relação ao conteúdo programático, o §1º do referido artigo, determina incluir “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil”, destacando ainda no §2º, que os conteúdos devem ser ministrados “no âmbito de todo o currículo escolar”.
Mas na interface curricular é importante considerar o que é explícito nos currículos e o que fica nas entrelinhas como um currículo oculto, que aparentemente não é visível, mas que está presente nos processos de ensino aprendizagem e pode vir a legitimar, em grande parte, as ideologias predominantes e/ou o que culturalmente tenta-se manter ou romper. Moreira e Candau (2007, p.22), vão assim conceituar currículo como:

Experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, permeadas pelas relações sociais, buscando articular vivências e saberes dos alunos com os conhecimentos historicamente acumulados e contribuindo para construir as identidades dos estudantes.

Percebe-se a amplitude da concepção, que parte do conceito de cultura como prática social e abre um leque de possibilidades entre os “saberes” dos alunos e os demais saberes institucionalizados, ou seja, espera-se que a concepção de um currículo totalmente impositivo, baseado numa ideologia para o controle social, tenha ficado pra trás, não devendo ocupar mais os bancos acadêmicos – pelo menos na ótica da intenção de uma educação transformadora.
Refletir sobre um currículo que atende ao que preconiza a Lei 10.639/2003 é também trazer à pauta os conteúdos que consideram as religiões de matriz afro-brasileira no seu aspecto cultural, histórico, social e também, na vivência religiosa de cada um ou nos grupos e segmentos representativos. Em um desdobramento dessas análises e reflexões, pode-se inferir que, na abordagem sobre as religiões que trazem consigo raízes afro-brasileiras, cabe atentar para o fato de que, parte da invisibilidade ou negação a estas manifestações, se dê pelo racismo aos grupos étnicos afro-brasileiros, levando a crer que, muito da chamada intolerância religiosa a essas práticas, seria manifestação de racismo. Possível seria ainda que o desvelar sobre as questões étnicas, envolvesse também a localização dos adeptos das religiões de matriz afro-brasileira na escola, reconhecendo os aspectos identitários que os representam, descortinando muitas das informações que ficam ocultas, delimitadas pelo que ainda seria ou não considerado como aceitável entre os grupos sociais.
Analisando o PRÉ-RELATÓRIO SOBRE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL (CCIR, 2015)[2], constata-se que, no caso das religiões afro-brasileiras, o percentual de registros de denúncias de discriminação e intolerância, é consideravelmente maior que as demais. No nível estadual, no caso do Rio de Janeiro, de 2012 a 2014 consta no relatório o percentual de 71,15% de casos contra as religiões afro-brasileiras. E na Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), de 2008 a 2014, entre as religiões com maior número de Boletins de Ocorrência, constam 26% de registros de reclamantes das religiões afro-brasileiras, em contraponto a 15% de Espíritas – sendo que, o próprio relatório destaca a generalização que muitos fazem do seu pertencimento religioso, quando se declaram como espíritas, quando na verdade, professam religiões afro-brasileiras. Outro dado significativo que o relatório apresenta e que denota o possível silêncio na assunção religiosa de cada um, é que chegam a 70% nas notificações, os casos de agressão verbal, sendo mais comum nas ofensas, o uso de expressões como: “macumbeiros” e “filho do demônio”. O texto do relatório chama a atenção para o fato de que “as pesquisas revelaram ser uma estratégia de proteção declarar-se católico e/ou espírita, tanto nos empregos, quanto nas comunidades em que vivem” as pessoas, “considerando que há subenumeração no total de registros das religiões afro-brasileiras” (CCIR, 2015, p.8), mesmo que tenham sido realizadas campanhas por ocasião do Censo 2010. O texto suscita ainda alguns questionamentos e reflexões:

Por que o Candomblé com suas diferentes nações não são tipificados e apurados? É uma pergunta que o segmento religioso deve pensar e traçar trajetórias de realização. Não há igualdade de critério nas classificações. É necessário fazer um trabalho de valorização e aumento da autoestima, um caminho possível para vencer preconceitos, discriminações e intolerância de todos os tipos. (CCIR, 2015, p.9)

Dados como estes ajudam a enfatizar a necessidade de buscar cada vez mais a especificidade, as particularidades, valorizando e respeitando as condições de cada pessoa, na sua crença, origem, etnia e posição social. Trazer para o cotidiano escolar essas questões é fundamental, para que as pessoas assumam suas pertenças religiosas sem o medo de serem intituladas como os “filhos do demônio”.



[1] Destacam-se como fatores intraescolares, entre outros: clima; comportamento e atitudes dos alunos e do professor (motivação, dedicação e absenteísmo); conhecimento do professor sobre as avaliações de larga escala; organização e gestão da escola, condições físicas da sala de aula e, como fatores extraescolares: nível sócioeconômico dos alunos, suas condições de vida e subsistência. Fonte: Programa de Avaliação da Educação Básica do Sistema Mineiro de Avaliação e Equidade da Educação Pública – PROEB/SIMAVE – SEE/MG/ CAEd/UFJF, disponível em: <http://www.simave.caedufjf.net/> Acesso em 22 dez 2016.
[2] A CCIR – Comissão de Combate a Intolerância Religiosa em parceria com o Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP); o Laboratório de História das Experiências Religiosas do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER-IR/UFRJ) e o Movimento Inter-Religioso (MIR), realizaram levantamento e análise de fontes disponíveis sobre a questão da intolerância religiosa no Brasil, que culminou em um pré-relatório divulgado em agosto de 2015. Entre as fontes, os casos de denúncia sobre discriminação e intolerância religiosa através do “Disque 100”, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), indicando os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais no topo das denúncias. Disponível em: <http://www.ceubrio.com.br/downloads/relatorio-Intolerancia-religiosa-18-08-2015.pdf>. Acesso em 22 dez 2016.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

SOCIEDADE, TRADIÇÃO, CULTURA E EDUCAÇÃO - A LINGUAGEM - contribuições do Prof. Rubem Barboza Filho

É comum hoje em dia quando falamos da escola, elencarmos problemas como: escolas em áreas de vulnerabilidade social, professores desestimulados, alunos desinteressados, violência na escola, público diverso e a necessidade de saber lidar com essa diversidade no ambiente escolar, resultados insatisfatórios no rendimento escolar, índices consideráveis de repetência, abandono escolar, entre outros. Diante desse ‘muro de lamentações’ ficam no ar os questionamentos: como a escola responde a esse mundo de diversidade (?), como a escola corresponde a sociedade atual (?), quais as palavras que poderíamos associar a escola que expressasse seu significado na nossa sociedade (?).
Segundo o Professor Rubem Barboza Filho (2012)¹ se fizermos essa pergunta sobre ‘o que a escola significa’, relacionada à sociedade francesa, poderemos associar palavras como: trabalho, aprender, refletir, comunicar, escutar – que nos traduz racionalidade, alinhada com o pensamento Republicano, com o governo. Assim podemos dizer que a escola francesa é a “expressão da tradição francesa republicana, ao princípio de que todos são iguais, numa escola que sabe o que quer, numa sociedade que tem clareza sobre esse querer, que tem tradição”.  Ainda segundo o autor, se direcionarmos essa mesma indagação aos norte-americanos, poderemos associar palavras como: esporte – treinar o corpo pra disputa sobre regras – na faculdade: argumentação, treinar pra melhor argumentar (típico de uma sociedade democrática). Podemos dizer que o que prevalece para os norte-americanos é o pragmatismo, onde materializam os valores e fundamentos da revolução americana, da guerra civil, onde a liberdade e igualdade se faz criando cidadãos responsáveis pela sua ação, sua tradição republicana. Percebemos com facilidade a perpetuação do ideário do herói americano, nos meios de comunicação em massa, como no cinema, na televisão, nos gibis e na própria escola.
Mas ao trazermos esse questionamento para a nossa sociedade brasileira, como responderíamos essa questão? Quais seriam nossas referências e quais palavras estariam associadas ao significado de nossa sociedade e de como a escola elabora essa significação no seu cotidiano? Considerando o nosso processo civilizatório, Barboza Filho (2008) destaca que o processo brasileiro foi fruto de miscigenação, foi de “baixo para cima” (contrário ao processo europeu que se deu e ainda o é, de cima para baixo). Compreendemos assim, ao analisarmos nossa história de colonização que a noção de império é diferente da noção de república, não havendo a intencionalidade no império de considerar todos iguais, com os mesmos direitos. A análise de nossa história é fundamental na tentativa de localizar as nossas significações e referências, mas é também nessa retrospectiva que nos deparamos com um cenário oscilante, onde o movimento parece ser sempre no sentido de iniciar um novo tempo, apagando o anterior, ou seja, desconsiderando o processo histórico de construção dessa nossa identidade, do que poderíamos chamar de ‘tradição brasileira’. Podemos dizer que no Brasil “nós destruímos todas as nossas identidades prévias – não temos passado – nós nos fizemos desgarrados das nossas culturas ancestrais”.
O precitado autor nos lembra que não temos no Brasil um discurso hegemônico, ele é ainda um grande mistério pra nós e isso acaba sendo custoso para a escola, o que não a imobiliza, pelo contrário, faz da escola um lugar fundamental e privilegiado de refletir sobre o lugar aonde ela está, localizar as suas referências com base nas referências daquela comunidade. Na nossa trajetória, não fomos um sociedade ordenada pela Coroa, por quem nos ‘governou’, no início da formação de nossas comunidades. Fomos uma sociedade que foi se fazendo, criando seus tipos, suas formas de sociabilidade, de expressão. E falando em expressões, importante referência pra compreender nossa tradição, são as expressões artísticas. Se considerarmos que Minas Gerais se fez essencialmente por mestiços, mesclando, no decorrer da história, escravos imponentes, que eram príncipes em suas tribos, com escravos trabalhadores que entendiam de mineração; portugueses pobres, que vieram atrás do ouro e intenção de fazer fortuna e voltar pra Portugal, com portugueses do norte de Portugal, já mais letrados – a expressão do barroco mineiro não fica limitada a expressão de uma arte, mas sim de uma forma de vida, visível nas cidades mineiras referência desse período.
Quando voltamos nosso olhar para Ouro Preto, por exemplo, não contemplamos um simples cidade com obras de arte, mas sim a própria obra de arte, o teatro de uma sociedade, ao mesmo tempo que é a expressão do que se quer ‘desenhar’ para uma sociedade. Barboza Filho nos lembra que na retórica de Aristóteles convencemos as pessoas pela imaginação e não pela razão, com a imaginação nós podemos mexer com as emoções, com os afetos das outras pessoas – o Barroco elege a capacidade de persuadir as pessoas como seu mote – teoria da verossimilhança – eu mexo com a alma do outro a partir de algo que já existe na mente da pessoa, levando essa referência para o seu imaginário. Persuasão, segundo Aristóteles, é a única forma de construir uma cidade, uma civilização. O Professor Rubem destaca que no Barroco as pessoas precisam se “fenomenizar”, ou seja, deixar claro o conceito na sua própria representação, não existindo o oculto, o que não é visualizado. Assim, o homem barroco é em si teatral e o mundo barroco é o mundo da arte – “não adianta o rei dizer que era rei, ele precisava criar uma ‘teoria barroca’ do rei”.
Mas como todas as nossas grandes disputas tinham as disputas de terra como base, o movimento da Primeira República, segundo o autor, foi a expressão as vontade da oligarquia rural, que vence a vontade do Imperador – “Dom Pedro não governou para os interesses das elites, dos latifundiários, da classe economicamente dominante”. Com a independência ocorreu uma ruptura com o movimento ocorrido em Ouro Preto, com o desenvolvimento de uma sociedade de ‘baixo para cima’. Prevaleceu a partir daí o ideário de um Estado progressista, que buscou se desenvolver a partir das referências européias. A tradição popular foi obscurecida pelo romantismo fantasioso, pois ao contrário do Barroco, o Romantismo trabalha com o inverossímil – é a fabulação das narrativas para a reconstrução arbitrária de uma tradição. Renegamos definitivamente o movimento ocorrido em Ouro Preto (que foi uma cidade com um enorme potencial democrático), surge Belo Horizonte que assume a vez de capital, e traz consigo a representação da razão.
Não ocorreu com o ideário romântico a pretensão de recriar a história do Brasil, mas ao eleger como base a natureza, o Romantismo brasileiro renega a fenomenização do que obrigatoriamente precisava ser experenciado visualmente no movimento barroco e ao fazer isso, renega a própria tradição cultural construída até ali. E vai buscar as referências no que existiu até mesmo antes de nós, a natureza e o índio integrado a ela. A arte romântica cria uma realidade que não é a expressão do real, onde prevalece o símbolo, onde a forma e o conteúdo se harmonizam, se encontram – “ele busca o real de nossos sentimentos”. A Nação passa a ser vista como uma comunidade imaginária e os países são subjetividades buscando sua própria interioridade. Mas se considerarmos que somos sentimentais, emocionais, podemos dizer que o romantismo faz parte da tradição brasileira. Mas em termos de referência, de significados, vale questionar a prevalência desse imaginário na história do Brasil e a forma como a escola lida com essas fantasias e com a prevalência desse imaginário.

A LINGUAGEM

Ao passearmos rapidamente por nossa história, provocando reflexões sobre nossa cultura e tradições e a construção de nossos ideários, significados e referências, temos a linguagem como representação de um povo, como a própria razão desse povo, pois a língua está presente em tudo, na palavra, nos gestos, nas ações, etc. Barboza Filho ressalta que a verdade sai do campo dogmático e vai para o campo da linguagem e que toda língua tem seus espaços de razões, sendo que quem cria a língua, um ‘jogo de linguagem’ é a experiência concreta da sociedade, de seu povo. Mas o autor também nos lembra que a língua não é só o território da liberdade, ela é também o território da tradição e precisamos conhecer e dominar a sua tradição para podermos realizar os diferentes jogos de linguagem. Essa compreensão é fundamental principalmente na escola, que se apropria da língua e de suas regras como se fosse dela, levando muitas vezes os alunos a pensarem que eles não sabem a própria língua. Se existe diversas possibilidades de ‘jogos de linguagem’, não podemos dizer que o aluno ‘fala errado’, na verdade ele está usando um determinado ‘jogo de linguagem’
Observando os conjuntos específicos de formas de vida que estão presentes na nossa linguagem, considerando a sociologia, podemos destacar três linguagens: a linguagem dos interesses, da razão e dos afetos. Na linguagem do interesse cada um de nós existe antes da sociedade, temos nossos direitos individuais que não nos podem ser negados (pensar, ir e vir, etc.), nessa vertente de linguagem a sociedade se organiza como um contrato entre indivíduos, estes criam a sociedade e o mecanismo que distribui justiça: o mercado, onde todos entram no ‘mercado’ com os mesmos direitos e deveres, esse ‘mercado’ é livre e racional – cada um persegue seu próprio ‘bem’. Ao Estado cabe a garantia da realização desses direitos, permitindo que cada indivíduo usufrua daquilo que elegeu como sendo o seu ‘bem’ – não é o Estado fazendo pelo indivíduo, mas dando condições pra ele fazer. Nesse tipo de linguagem está a prevalência do ideário norte-americano, a tradição da sua sociedade.
Na linguagem da razão, segundo Descartes, o homem existe depois da sociedade. Referenciando Kant quando afirma: “haja de tal maneira que sua idéia possa ser universal”, percebe-se que quem tem que ser preservada é a comunidade, o interesse social. Aqui encontramos o ideal francês.
Já para a linguagem dos afetos, o homem só existe nas suas ‘relações sociais’, buscando criar formas de relação que revelem e desenvolvam as nossas potências, nossas capacidades, chamado por Marx de “modos de produção”. Também como referência na defesa dessa linguagem, Aristóteles, São Thomas, as religiões.
Voltando para a questão escolar, percebemos que a escola precisa entender e harmonizar as tendências dessas três linguagens – “no processo pedagógico, as três linguagens precisam estar presentes”. Voltando a questão inicial, dos ‘problemas escolares’, com essa reflexão percebemos ainda que as amarras que prendem o fazer escolar, impedindo que ele se faça de forma mais produtiva para todos e menos sofrível, é a insistência em forçar modelos, ou linguagens que não correspondem ao que realmente somos. Como destaca Barboza Filho, tendemos a conceber a escola como a que doutrina, impositiva, de cima para baixo, definimos um modelo francês de escola, mas nossos alunos não são franceses, a escola tem que corresponder aos nossos próprios vínculos, caso contrário, a clientela continuará ficando alijada, longe da escola.

¹ BARBOZA Filho, Rubem. As Linguagens da Democracia. RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008. [Semana Presencial no Curso de Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública – CAEd/UFJF. Julho de 2012.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

SOBRE O TEXTO “AVALIAÇÃO EDUCACIONAL E CLIENTELA ESCOLAR” DE MAGDA SOARES

 Profª Claudia Conte[1]


Apresentado em 1978, pela Professora Magda Soares no Simpósio “A utilização da avaliação educacional para incrementar as oportunidades educacionais sociais”, o artigo “Avaliação Educacional e Clientela Escolar”, propõe uma análise crítica aos processos de avaliação educacional, descortinando o próprio processo em si, ou seja, na sua práxis, onde a autora chama a atenção para a utilização da avaliação educacional, muito mais como instrumento de controle do conhecimento e das hierarquias sociais, do que como fomento de oportunidades educacionais e sociais.
O texto, entre outros, integra o livro “Introdução à Psicologia Escolar” (Cap. 4, Parte I), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, organizado por Maria Helena Souza Patto, tendo sua primeira edição em 1981[2]. O livro, uma coletânea de textos na área da psicologia escolar, contribui de forma ampla na reflexão sobre desigualdades, escola pública, pobreza, relação entre professor e aluno, com textos que referenciam Bourdieur, numa análise de David Swartz; como também Paulo Freire na sua defesa da educação “libertadora” em contraponto com a educação “bancária” e demais autores. No transcurso de nossa história, calçamos nossas bases educacionais em ideários revolucionários, empunhando bandeiras da educação transformadora, da “educação como prática da liberdade” (Freire, 1993)[3].
No Brasil, agigantava-se, nas décadas de 70 e 80, um forte espírito para as grandes e providenciais reformas políticas, com destaque para o fim do governo militar e a chegada de Tancredo Neves à Presidência da República em 1985 – um presidente civil escolhido por voto indireto após um forte movimento social pelas “Diretas”. Três anos depois, em 1988, o Brasil publicava sua nova Constituição, garantindo amplos direitos humanos, embasados em princípios de igualdade, equidade, acesso aos bens e serviços, à educação e à saúde para todos.
Sobre o “controle do conhecimento”, Soares ressalta que a avaliação age em três abordagens: uma que define o que o aluno deve saber; a outra a abrangência desse saber, ou seja, até onde ele sabe e a outra, se o que ele sabe é da forma que deveria saber. Citando Bourdier Passeron (1975), a autora destaca que “a avaliação, na verdade, limita as oportunidades educacionais e sociais, na medida em que legitima determinada cultura em detrimento de outras e legitima determinada forma de relação com a cultura, em detrimento de outras formas”.
Quando fala sobre o “controle social”, a autora relaciona este com o próprio controle do conhecimento, uma vez que, a avaliação, ao determinar uma cultura em detrimento de outra, faz essas “escolhas” a partir do que é determinado pela cultura da classe dominante e a própria relação desta com a cultura. Assim, o que predomina segundo Soares, são as referências da classe dominante e a interpretação dessa parcela da população, das demais referências culturais da sociedade. Como num jogo de privilégios, o texto nos chama a atenção para o que está oculto na intencionalidade avaliativa, onde a relação do aluno, pertencente a camada dominante da sociedade, com o conhecimento que é aferido na avaliação é bem diferente da relação dos demais estudantes, pertencentes as classes populares. Para esses alunos, atrás de uma aparente avaliação de conhecimento, estão aprendizagens que extrapolam os muros escolares, existem antes, além e fora dela, por legitimação da própria desigualdade social, onde a minoria elege o que deveria ser para todos, mas que pela ordem e organização social, não é de livre acesso.
Ao destacar a expressão “oportunidades educacionais”, a autora transparece seu incômodo com o que considera um equívoco semântico e uma práxis distorcida que a expressão provoca no sistema educacional, sendo que para a mesma, o que ocorre realmente é a “aceitação da discriminação entre estudantes”. Essa discriminação legitimada estabeleceria o princípio da desigualdade entre os indivíduos e consequentemente a natural aceitação de uma desigualdade de resultados educacionais, que até mesmo isentaria a escola da responsabilidade quanto a esse fato.
E é explicando a justificativa da isenção de responsabilidade da escola nessas desigualdades, que o texto contribui com uma reflexão sobre os “dons inatos”, que justificaria a pretensa desigualdade de resultados educacionais pela “natural” desigualdade na capacidade intelectual dos indivíduos. Referenciando Young (1958), Soares destaca que para o autor “a capacidade intelectual, associada ao esforço definiria o mérito e esse seria o único critério de determinação do sucesso ou fracasso educacionais”. Em relação a meritocracia e ideologia do dom, o texto demonstra uma estreita relação onde, de certa forma, são ideologias que se retroalimentam. Essa idéia esta explicita na afirmação de Karier (1974), citado pela autora: “na utopia de uma sociedade aberta à meritocracia, todos irão receber seus prêmios apenas com base nos seus verdadeiros talentos naturais”. Esse enfoque fundamentalmente psicológico, que atrela o mérito escolar ao talento individual, ou seja, ao que cada aluno conquista com seus dons, contrapõe a idéia das ciências sociais que relacionam as capacidades intelectuais às condições de vida. São idéias opostas. Uma justificando a ascensão social pelo talento e a outra, relacionando a dificuldade de acesso à pré-condição desfavorável desse sujeito na sociedade, que acaba por fadar o sujeito a um subdesenvolvimento educacional pela limitação de um currículo reduzido, justificado pelo discurso da “educação para as diferenças individuais”.
Percebemos com esse texto, que podemos até de certa forma, considerar inovador para a época em que foi à público, a visão crítica da autora ao que ela insistentemente ressalta como dissimulação da verdadeira intencionalidade no controle social hierárquico, ou ainda do que é “mascarado” nos processos de avaliação, onde os sistemas educacionais implicitamente exercem o controle do conhecimento. Numa fala muito direta e que chega a soar como “palavra de ordem” das bandeiras libertárias da educação – típica do momento político da época – Magda Soares parece enxergar adiante no nosso processo educacional e o alerta aqui destacado de forma tão veemente, ecoa em nossos ouvidos como um alerta ao que hoje vivenciamos na educação. No nosso atual momento, onde a avaliação, mais do que nunca, é alvo e palco de tantas políticas educacionais, pensar na “intencionalidade” das avaliações e nos “controles”, sejam estes, camuflados ou explícitos, é fundamental para uma dinâmica que se pretende desenvolver qualitativamente.
A forte conotação política e visível insatisfação e desconforto com a realidade vivenciada, externada pela crítica ao sistema educacional como instrumento de manipulação da classe dominante, é percebida claramente no texto como: “a desigualdade de resultados é aceita como natural e por ela não se responsabiliza a escola; o fato de igualar as oportunidades isenta de responder pela desigualdade de trabalho”. Citando Charlot (1977), na afirmativa de “que a escola reduz o social ao individual e isola a educação das realidades econômicas e sociais que a condicionam a fim de camuflar seu papel no jogo das desigualdades sociais”, Soares não sussurra suas idéias, ela parece ‘gritar’ com sua ‘fala’ o cuidado que precisamos ter na nossa práxis e na nossa busca de referências, alertando-nos que a avaliação é um fácil e “grande instrumento” de “dissimulação, camuflagem e mistificação”.
Na corrente dos ‘novos tempos’, foi também no final da década de 80 que inauguramos a rotina de avaliação educacional no Brasil, anunciando as políticas de responsabilização. O prenúncio da Professora Magda Soares nos sinaliza aos cuidados com a prevalência da meritocracia e da dicotomia entre a intencionalidade e a realidade, como também, o cuidado com o que privilegiamos no currículo, o que é real, oculto ou idealizado.


__________________________________________________________________________
REFERÊNCIAS

BROOKE, Nigel. Marcos Históricos na reforma da educação. 1. ed. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2012.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.

PATTO, Maria Helena Souza [org.]. Introdução à psicologia escolar. 3. Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. Cap. 4, Parte I, p. 51-59: SOARES, Magda Becker. Avaliação educacional e clientela escolar. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=krd6zhqih88C&pg=PA51&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=true> Acesso em 17 ago 2012.


[1] A Profª Claudia Conte dos Anjos Lacerda é Pedagoga, com Especialização em Educação Inclusiva e Mestranda Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública, pelo CAEd/UFJF. Atua como Supervisora Escolar na Rede Municipal de Leopoldina e Professora de Educação Básica na Rede Estadual de Minas Gerais.

[2] Em 1981 o livro foi editado pela T.A. Queiroz Editor, sendo reeditado, já em 1997 (3. ed.), pela Casa do Psicólogo Livraria e Editora, São Paulo.

[3] A primeira edição do livro de Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade, foi em 1967, tendo ele escrito o livro em seu período de exílio. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

DIVERSIFICANDO O LETRAMENTO E OS SUPORTES TEXTUAIS NO COTIDIANO ESCOLAR – A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO COM HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NA SALA DE AULA *

Há uma questão desafiadora hoje em nossas escolas: a apropriação por parte dos professores de metodologias e dinâmicas diversificadas no processo de aprendizagem dos alunos. Algumas vozes chegam a apregoar que, mediante a ascensão tecnológica do nosso tempo, estamos no século XXI, mas a escola continua no século passado, e alguns mais pessimistas dizem que não saímos da Idade Média. Exageros a parte, não podemos negar que muito ainda temos a avançar no cotidiano escolar para que possamos realmente desenvolver aprendizagens significativas com nossos alunos, que realmente promovam o tão almejado ‘acesso’ a todos, sem distinção, ou seja, que na construção dos saberes, os alunos desenvolvam os vários letramentos que vão abrir-lhes as portas para o mundo.

E é a partir desta questão desafiadora que o Grupo de Trabalho 7 (GT7), do “I Fórum Nacional de Pesquisadores em Arte Sequencial”, em Leopoldina, MG, propõe discutir as metodologias e práticas escolares para o desenvolvimento da aprendizagem, através do uso de quadrinhos, cinema e outras narrativas seqüenciais no cotidianos escolar e na expansão deste para outros ambientes de formação. Proponho então, entendermos a relevância do trabalho na sala de aula com Histórias em Quadrinhos.

Segundo CAGLIARI (1994)¹ , “há um constante movimento entre o sistema ideográfico e o fonográfico, na medida que aumenta a relação fonográfica diminui a relação icônica, e vice-versa”, o que não quer dizer necessariamente que trabalhar com o sistema ideográfico desprivilegia o sistema fonográfico, mas sim, que ambos se complementam e estão presentes no nosso dia a dia. Evoluímos de um sistema baseado nos significados, exclusivamente ideográfico, pictórico, correlacionado com a cultura local e que independia da língua, para um sistema baseado no significante, que pela histórica variação linguística, levou o sistema ideográfico ao alfabético, dependente dos elementos sonoros de uma língua, da ordenação linear da escrita, levando a combinação de ícones como uma escrita motivada foneticamente, ou seja, os sons de uma língua levam a um sistema de escrita. Mas por outro lado, Cagliari nos lembra ainda que variações sócio-linguísticas puxam o sistema alfabético p/ o ideográfico, sejam pelos dialetos, pelas diferentes formas de emissão fonética, ou pelos sotaques. É fato que no nosso cotidiano, convivemos constantemente com sinais, como os sinais de trânsito, com logotipos e ícones diversos, ao mesmo tempo que, para nossa devida autonomia, somos dependentes da apropriação de nosso sistema de escrita.

Falando dessa relação cotidiana e indispensável entre sistemas ideográficos e fonográficos, é importante considerar a comunicação humana através da imagem gráfica, justificando o grande sucesso das histórias em quadrinhos, representando hoje, segundo Barbosa (2006)², “no mundo inteiro, um meio de comunicação de massa de grande penetração popular”. Fazendo referência as paredes das cavernas do homem primitivo, usadas como murais comunicando “caçadas bem sucedidas, a informação da existência de animais selvagens em uma região específica, a indicação de seu paradeiro, etc.”, os autores destacam:

"De certa forma, pode-se dizer que as histórias em quadrinhos vão ao encontro das necessidades do ser humano, na medida em que utilizam fartamente um elemento de comunicação que esteve presente na história da humanidade desde os primórdios: a linguagem gráfica".

Se trouxemos da nossa própria origem a forte presença da imagem na nossa comunicação, não desmerecendo com isso o sistema fonográfico, trabalhar com quadrinhos na alfabetização e letramento, por exemplo, é sim um recurso possível e porque não dizer indispensável. Equivocadamente a escola vem privilegiando, quase que exclusivamente, a escrita do alfabeto fonético, em detrimento da imagem após a Educação Infantil. É como se existisse uma concepção que a criança tem que desenhar mais na Educação Infantil e a partir do momento que ela se apropria do sistema de escrita, o desenho já não é tão necessário. Considerando os educadores essa interpretação, as crianças vão desenhando cada vez menos, deixando latentes suas habilidades, estagnando seu ‘traço’ exatamente na fase em que elas deixaram de desenhar, ou seja, crescemos, mas nosso desenho ficou no tempo, na fase infantil.

Talvez pela própria velocidade da vida hoje em dia, pela intensidade com que vivemos nosso tempo, pela própria globalização que rompe as fronteiras e nos coloca “acessando” o mundo em tempo real, a necessidade de nos comunicarmos cada vez mais de forma ágil, resgata a vivência do sistema ideográfico, da imagem, dos símbolos. As Histórias em Quadrinhos são então, opção pertinente para o trabalho pedagógico, aliando imagem e escrita fonográfica, abrindo para possibilidades outras de letramentos, rompendo barreiras sociais, culturais, étnicas, de gênero, de idade, etc. Os HQs abrem para a diversidade, rompem fronteiras, derrubam muros, e ampliam nossas possibilidades de ler e escrever o mundo.

* Claudia Conte dos Anjos Lacerda
Pedagoga, com Especialização em Educação Inclusiva e
Mestranda em Gestão e Avaliação da Educação Pública
CAEd/UFJF
____________________________________________________

[1] CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Linguística. São Paulo: Scipione. 1994. cap. 3. p. 114-117
[2] BARBOSA, Alexandre. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula/Alexandre Barbosa, Paulo Ramos, Túlio Vilela: Angela Rama, Waldomiro Vergueiro, (orgs.) 3ed. São Paulo: Contexto, 2006. (Coleção: Como usar na sala de aula).